terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

Mysen, 5 Fevereiro 08, 20h36

.

Estou cansado. Nem estou a morrer por escrever esta entrada, mas acho que devo… é uma espécie de compromisso que assumi comigo mesmo. Pelo menos nestes primeiros tempos quero manter-me a mim próprio actualizado. Estou cansado e com algum sono, acho que desde que acordei (8h15), só agora é que assentei. E mesmo assim, estou a fazer este diário…

.

Acordei e reuni-me com T1 no seu escritório. Aí estivemos em reunião cerca de duas horas. Falamos acerca do processo inicial de pedido de entrada na CT, do primeiro contacto. O processo não é de todo diferente do nosso em Portugal, pelo que me pareceu. Chega uma ficha com a descrição do paciente, alguma história de VIDA, diagnóstico, história de consumos, entre outros. Diz-me que muitas vezes recebe diagnósticos que acabam por não se confirmar, pelo que tenta sempre averiguar se são, efectivamente, “reais”. Contudo, os únicos critérios de exclusão estão relacionados com casos de abusadores de crianças, doenças mentais profundas, pessoas com historiais de incendiários… Uma diferença que encontrei em relação à CTAI é o facto da entrevista. Quando disse que fazia parte uma entrevista de selecção, disse-me que também faziam, mas pareceu-me ser quando a pessoa já se encontra na casa, sugerindo-me algo semelhante a um follow-up, versão imediata.

.

Tínhamos um plano para a manhã, que era abordar os aspectos iniciais do tratamento, mas algumas coisas tiveram de ficar para o dia seguinte, pois iam surgindo outras conversas relacionadas com o tema, e por aí nos íamos aventurando. A determinada altura comento com ele o facto de ter reparado que via muitos utentes a beber coca-cola (pertencentes a si mesmos, não da CT), bem como a comer muitos doces. De facto, reparei, na ski-trip, que quase todos os utentes, quando parávamos nas estações de serviço, compravam guloseimas. Inclusive, havia uma promoção de acordo com a qual era possível comprar um pequeno balde de gomas por 50 NOKs… pois vi alguns a esmagar as gomas com toda a força para tentar assim fazer caber mais! T1 disse-me ser um “sugar craving”, idêntico ao que se sente quando se fuma erva, mas neste caso faz-se sentir por mais tempo, como está à vista. Faz um certo sentido, e comprovo, pelo que acabei de dizer ter visto. Contudo, não me recordo de situações parecidas em Portugal. Se bem que não estava na CTAI um terço do tempo que estou aqui…

.

Partilhei com ele a minha reflexão do dia anterior, sobre o tema psicólogos “vs” ex-toxicodependentes como funcionários na CT. Uma coisa que me agrada bastante em T1 é o facto de, não só nunca se pôr numa posição altiva em relação a mim, como também o facto de relembrar constantemente que não tem por que o fazer. Disse que no passado, e em muitos sítios hoje, havia (ou há), grande competição entre profissionais de saúde mental e ex-toxicodependentes, fazendo essa competição com que, não só nenhum ganhasse, como os residentes saíssem prejudicados. Concordamos que um equilíbrio entre ambos seria bom, e que ambos têm muito a aprender um ou o outro. Eu, sinceramente, sei que tenho ali muito por onde aprender e, felizmente, vejo que está disposto a ensinar. O que não estava à espera era de tanta abertura para aprender, o que me deixa confuso. Sou uma pessoa autoconfiante, mas não consigo deixar de pensar: “O que é que lhe posso ensinar?...”. Acho que é um pensamento de primeira instância, pois tenho atrás de mim 5 anos de curso que muito me ensinaram. Talvez este meu “receio”, ou dúvida, e só agora é que estou a pensar nisto, se prenda com o facto de achar que quase aprendi mais no ano na CTAI que no resto do curso… e este pessoal trabalha aqui há 20 anos… Acho que não senti tanto isto na CTAI, naturalmente, porque tinha ao meu lado dois psicólogos, com experiência e sabedoria. Ok, mas verdade seja dita, esta catrefada de pensamentos foi algo que surgiu agora, não se pense, nem que ando aqui às voltas a pensar no que posso ensinar (pois foi uma sugestão, e as situações surgiram eventualmente), nem que, apesar de não serem psicólogos, são ignorantes no domínio do funcionamento mental. Espero estar a fazer-me perceber. Percebes, Pedro? Eu percebo…

.

Creio não ter referido isto ontem, mas nesse mesmo dia perguntei a razão pela qual não tinham ninguém com HIV. Se seria um critério de entrada, ou se simplesmente não aparecia ninguém. Felizmente, a resposta foi a segunda. Felizmente, primeiro porque quer dizer que a taxa de infectados neste país é, aparentemente, baixa, e porque, a menos que a explicação fosse muito boa, não me sentiria bem em saber que o HIV era um critério de exclusão. [fui agora investigar – 0.454 per 1,000 people].

.

A determinada altura, e por nenhuma razão em especial, referi o assunto do quarto, ao que ele me disse que eu não mudaria de quarto. Disse de tal maneira peremptória que quase parecia que estava chateado com o facto isso sequer ser uma hipótese. Apressei-me a dizer que isso não seria uma grande problema para mim, para caso estivesse realmente chateado, não pedir satisfações aos responsáveis. Mas não estava, claro. Disse só que eu era um membro do Staff, e um convidado, e não um dos residentes, pelo que não ia andar a mudar de quarto em quarto. Salientou que, apesar de, no aspecto humano estarmos todos no mesmo nível, no papel da CT, enquanto pessoas com tarefas e funções, há uma distância ente o Staff e os residentes que é preciso manter e salvaguardar. Nada que não soubesse, naturalmente, mas percebi a razão de o dizer.

.

Quando fizemos uma pausa, enquanto T1 fumava um cigarro, tivemos uma conversa acerca das condições que a Noruega oferece. É curioso, mas são tão boas, que acabam por ser demais. Vou dar o exemplo que T1 me deu…

.

Ele tinha um miúdo em sua casa, pois os pais estavam institucionalizados. Não sei quanto tempo o miúdo esteve lá, mas acho que foi mais de um ano. O miúdo queria que ele o levasse sempre de carro à escola e ele, não o podendo sempre fazer, falou com os serviços sociais e arranjaram uma bicicleta ao miúdo. Ele queria que T1 o levasse, e uma bicicleta melhor. Nada feito. Na primeira vez que foi para a escola partiu a bicicleta. “Agora vais a pé!” – diz T1. O miúdo, claro, não queria. Acho que chegou a ir uma ou outra vez, mas depois, certo dia, ligou para os serviços sociais, não sei que disse e não sei quê… conclusão… teve uma bicicleta melhor!

.

Eu disse-lhe que coisas destas em Portugal eram simplesmente impossíveis. E, cá entre nós, não é para ensinar os putos a lutar pelas coisas… Na verdade, parece que há uma falta de equilíbrio, um ou tudo ou nada. Bem, estava a ler o que acabei de escrever. Tendo insinuado que na NR há de mais, e que em Portugal nada assim aconteceria, pode parecer que em Portugal há de menos. O pior é que era mais ou menos isto que queria dizer, apesar de perceber agora o quão ridículo estava a ser. Estava a comparar-nos com o país mais rico do mundo, como se esse espectro de riqueza, começasse na Noruega e acabasse em Portugal. Isto quando dezenas de países e milhões de pessoa em que a prioridade não é uma bicicleta, tampouco escolaridade, mas comer…

.

De qualquer maneira, diz-me que este governo leva demasiado as pessoas ao colo, de certa forma não as fazendo lutar para obter algo, de uma forma que faz com que a tolerância à frustração que se desenvolve saia a perder… e quem sai a perder com esta saída a perder é a pessoa… Basta relembrar o que disse há uns dias, sobre o argumento de “pá, se desistires do tratamento, sais daqui e não tens nada!!”… É como se a fronteira entre os direitos e os privilégios fosse tão ténue que fizesse ser fácil os distinguir. Claro que isto que digo é baseado nesta ou naquela conversa, em eventuais ideias que me surgem fruto de observar isto ou aquilo, posso estar errado. Não quero que quem tenha a coragem de me acompanhar ao longo destes milhares de palavras tome o que digo como ciência… há observações, e observações. Por exemplo: sabiam que a Noruega é o país número 1 do mundo no consumo de café, consumindo uma pessoa 10.7kg num ano? Isto já é científico! O segundo é a Finlândia (10.1), seguida da Dinamarca e da Suécia. Dá que pensar. Demasiada coincidência… Toda a Escandinávia??? (A Islândia faz parte ou não?).

.

Depois do almoço, tivemos o seminário, com os residentes da primeira fase. No início, T1 foi buscar umas agulhas, e sento acupunturista, espetou 5 em cada orelha de 3 residentes, bem como uma entre as sobrancelhas e uma na nuca. Perguntou-me se queria, ao que respondi nunca ter experimentado, e por isso, tudo bem. De referir que um residente adormeceu no seminário, e outra passou pelas brasas. Eram 5.

.

Quando me perguntou o que achei, no final, disse que, sendo honesto, me tinha aborrecido de vez em quando, por não perceber quase nada do que se dizia, mas que isso, contudo, era um problema meu, e que apenas eu poderia resolver. Ele percebeu, e perguntou-me o que achei da dinâmica da reunião, e o que absorvi. Disse que me pareceu que 1 estava atento e interessado, mas que tinha estranhado o adormecimento de dois residentes, dizendo que quando isso acontecia em Pt, fazíamos por acordá-los. Na verdade, T1 já me tinha advertido que tal poderia acontecer. Ele disse que percebia a minha questão, e que também a ele já lhe causara confusão, pelo que os acordava. Contudo, quando os residentes estão na primeira fase, e especialmente sobre o efeito relaxante das agulhas que tinha posto, diz não ser raro isso acontecer, e percebe, deixando-os estar. Não sou capaz de reproduzir exactamente o que disse, pois fez-me mais sentido do que agora está a fazer… vejamos, disse que os residentes que acabam de entrar precisam de se sentir, especialmente, em segurança, e além disso, são normais Ester períodos de sonolência, e por isso não os acorda. Disse-me ainda, e por acaso não tinha pensado nisso, que quando sem as agulhas que colocou, o adormecer é daquela forma que conhecemos, com a cabeça a baixar lentamente, e a subir de repente, fruto dos resquícios de chamada ao mundo dos acordados. Quando com as agulhas, é um estado de relaxamento, e gradual… ele simplesmente adormeceu. Devo confessar que sou séptico em relação a este tema, mas tento manter uma mente aberta em relação ao mesmo…

.

Depois do jantar, vi um episódio de “That 70s Show” e vim para o escritório. Tinha passado todo o dia ocupado, mas queria ainda fazer as minhas “tarefas diárias”, que se traduzem em:

Ler 20 páginas do livro sobre Cts

Ler 10 páginas do livro sobre Gestalt Therapy

Estudar meia hora de NR

[opcional] ler um dos N mails do Fórum Internacional de CTs

[opcional] “procurar futuro” (procurar ofertas de emprego, estágios, bolsas, enviar currículos, fazer cartas de apresentação, etc)

Actualizar o meu diário.

.

Pois são 23h e estou aqui sentado ao computador… Ontem escrevi 5 páginas do meu romance, que não é muito, mas é bom para uma hora. Hoje acho que não vai dar…

22h53

PS – Pus, como fundo do ambiente de trabalho a foto que está em baixo. É a mesma do meu quarto, mas com a rapariga mais querida do mundo a espreitar. Tive de a tirar outra vez. De cada vez que ligava o computador ficava uns momentos a olhar, e via nascer uma certa saudade, sem ser daquela que traz sorrisinhos…

1 comentário:

pedro disse...

isto é tipo uma saga...não é sacrifício nenhum ler todas as milhares de palavras que escreves, mas ler apenas ao fim de semana e tudo de uma vez leva o seu tempo :) só agora me apercebi que estavas a morar com as próprias pessoas "internadas" certo? deve ser uma experiência diferente...abraço