[mais abaixo podem ver um vídeo em Anfield]
Mysen, 27 Janeiro 08, 20h34
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Começo a perceber que falar Norueguês não vai ser fundamental para ser um membro activo desta comunidade. Na verdade, toda a gente fala inglês. Uns melhor que outros, claro. Por um lado esperava isto, por outro não. Por um lado, sei que nos países nórdicos é difícil encontrar alguém que não o faça, por outro, pode-se por vezes esperar historiais complicados a nível escolar na população toxicodependente, taxas significativas de desistência, pelo que questionei se seria assim tão fácil comunicar.
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Hoje acordei cedo. Não me recordo, e não me recordo mesmo, de ter acordado às 9h num Domingo. Fui acordado pelo 1 (sem nomes, right?), a quem tinha pedido que o fizesse. O pequeno-almoço não seria antes das 10h30, mas tinha em mente dar uma corrida, por isso decidi acordar mais cedo. Se bem que mesmo que não fosse correr, não acordaria para lá das 9h30… Pois eis que me visto, calçõezinhos, t-shirt e long sleave, e me faço à estrada. Aguentei muito tempo, fiquei surpreendido… 8 minutos, à vontadinha!... Tive de parar porque tinha os pulmões a arder e não sentia as orelhas nem o nariz. São coisas…
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Após tomar banho, ainda havia algum tempo antes do pequeno-almoço, pelo que fiquei a ler, na sala convívio, um pouco do “Comunidade Terapêutica – Teoria, Modelo e Método”. No pequeno-almoço tive mais um “welcome” muito caloroso. Literalmente! Veio foi de parte do meu copo de vidro, onde o meu café quente se preparava para ser bebido. Não me magoei, por isso acho que posso dizer que foi engraçado. Quer dizer… andava a olhar de lado para uns ovos mexidos que se apresentavam vaidosos na mesa do pequeno-almoço, e que pouco mais tarde aterraram no meu prato. Tendo o copo rebentado ao lado desse mesmo prato, já com os ovos mexidos a morrer de medo de mim, tive de deitar ao lixo a comida, vidro não faz parte da minha dieta de Domingo. Conclusão: fui repetir, e tive de me contentar com uma colher de sopa de ovos mexidos… isto à parte do pão, geleia, flocos, essas coisas. Ah, também perdi um ovo cozido. O povo precisa de proteínas!
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Depois do pequeno-almoço, sentamo-nos todos na sala de convívio. Notei alguma confusão por parte dos utentes, e depois 1 diz-me que geralmente os lugares são aleatórios, mas que pediu, desta vez, para se sentarem por hierarquia, para eu saber onde estão colocados. A reunião é a reunião da manhã, e é feita todos os dias, pelo que percebi. Hoje, em honra ao português, fizeram-na em Inglês. Agradeci, mas ao mesmo tempo senti-me on the spot. A reunião começou com 1 a ler umas folhas onde lia coisas como o horóscopo de hoje, a citação do dia, e aniversários de estadia na CT. Pois calhou à 4, que tinha feito, no dia anterior, 11 meses de CT. Para gargalhada geral e espanto (só meu), o que teve de fazer era algo que fosse ridículo/ engraçado/ estranho/ curioso/ etc. 4 levantou-se e após os primeiros 3 minutos de hesitação, cantou, durante um breve minuto, “Killing Me Soflty” enquanto fazia a dança do robô! Calhou a 5 fazer o mesmo de seguida, pois tinha sido o “homem do dia” no dia anterior. Seguidamente, toda a gente se apresentou, dando-me as boas-vindas. É difícil memorizar o nome de 30 pessoas, mas estou a tentar.
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Após tudo isto, continuei a minha saga de leitura, na meu quarto, até que ouço bater à minha porta 2, dizendo que ia ser o meu guia pelas instalações. Com um sorriso, agradeci. Lá fiquei a conhecer todos os cantos e recantos desta CT.
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Pormenores que achei interessantes [peço desculpa se aborreço, mas este diário, mais que para quem lê, é para quem escreve mais tarde o fazer] :
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▪ Sendo uma CT grande como é, tem uma recepção, onde está sempre, não um membro do staff, mas dos residentes, atendendo telefones, e tudo o que se costuma fazer numa recepção;
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▪ Num dos andares de baixo, ao canto, tem uma caixa, chamada, se não me engano, Spliff-Box. Conta-me 2: “Se alguém tem necessidade de explodir, ou de ter alguma reacção mais efusiva, não o faz. Contem-se, e ao invés, tira um papel daqui [apontando para uma pilha de papéis pequenos, rectangulares, onde se lê, em Norueguês, “De”, “Para”, e “Motivo”], escreve ali [apontando para dois longos bancos com uma mesa no meio, o Spliff-Bench] e depois coloca na caixa. Mais tarde, numa reunião, os bilhetes são distribuídos para o destinatário e lidos.” – Achei interessante. Claro que é bastante nórdico, estou a imaginar os portugueses a rebentar na hora. Contudo, vale a pena reter… afinal a nossa cultura, por melhor que seja, não é perfeita…;
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▪ Ao lado da Spliff-Box, pode-se ver outra pilha de folhas, desta feita A4, com várias linhas, e colunas onde se pode ler “Nome” e “Feito”. Não é bem isto, mas é similar. Pois conta-me o 2: “A ideia é sempre que fazemos algo, como por exemplo, levar um copo à cozinha quando alguém o deixou num sítio qualquer, apontamos aqui. No final do dia, costuma ter umas cem coisas. A ideia é de dar valor às pequenas coisas que se fazem.”;
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▪ Perto da recepção, à esquerda, podemos ver um banco. Conta-me então 2: “Especialmente durante as fases iniciais, quando alguém está com ideias de ir embora, se sente desmotivado por esta ou quela razão, senta-se neste banco [Bench qualquer coisa] a reflectir sobre o assunto. Depois faz um registo na recepção, e o tema é abordado numa próxima reunião;
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Houve, concerteza, outros pormenores interessantes, mas referi-los-ei à medida que me for lembrando. Mas por alto, posso dizer que a CT tem:
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▪ A casa dos homens, onde se encontra também a lavandaria [que já usei, ontem];
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▪ A casa da frente, que alberga: o dormitório das mulheres e um pequeno pavilhão desportivo;
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▪ Uma casa que ladeia a última, onde se encontram a recepção, os escritórios, a sala de aulas e uma data de divisões semelhantes, no rés-do-chão. No andar de baixo, se não estou em erro, está a cozinha, a sala de jantar, mais algumas divisões de que não me lembro;
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▪ Em conexão com a casa supra referida, temos a sala de estar, mais algumas divisões, sendo uma das quais a que o meu orientador disse talvez vir a ser o meu escritório. Não que precise, o quarto serve bem, mas veremos;
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▪ Algo que acho ser uma capela;
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▪ Um celeiro;
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▪ Mais duas casas, um pouco deslocadas, onde se encontram as pessoas em Fase 2.
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Sobre a Fase 2. Todo este complexo é habitado por pessoas em Fase 1, que dura um ano, e é composta, em si, por 3 fases, (Motivação, Desenvolvimento e Crescimento, Orientação para a saída). A fase 2 é mais independente, durante a qual é esperado que os residentes estejam já na escola, ou façam algum trabalho voluntário alguns dias por semana (estão 7 utentes nesta fase, e 30 na Fase 1). Na fase 3 os utentes devem já viver num apartamento encontrado e pago por si, tendo um trabalho pago ou estando a estudar (10 utentes nesta fase). Finalmente, na Fase 4, onde estão 7 utentes, se percebi bem, os utentes vão contactando a CT e visitam a mesma, creio, de 3 em 3 meses. Todo este processo dura aproximadamente 2 anos, sendo o primeiro dedicado à Fase 1.
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Não houve almoço. Nem costuma haver aos Domingos, pelo que me pareceu. Não é descabido, sendo que o pequeno-almoço é tardio e bastante rico. O que é um pouco estranho é o jantar ser às 17h. Não, não me enganei e queria escrever 7h, é mesmo às 5 da tarde. De qualquer maneira, entre estas duas refeições, aproveitei para dar uma corrida com 3, com quem, apesar deste não ser brilhante a inglês, tive uma conversa bastante interessante ao longo dos nossos 30 minutos de corrida. Fui vestido da mesma maneira, mas desta vez correu bem. Nota: Não correr de manhã. Ah, ia-me escapando. Uma actividade porreira de que fiz parte… Os residentes tinham-me dito que iam ter uma actividade qualquer (disseram-me um nome que afirmam ser chinês, mas que não recordo), à qual me juntei. Qual não é o meu espanto quando vejo uma sala com todos os utentes rodeando a Terapeuta 1 (T1), a ouvir música Tecno, e a agitar as mãos, estendidas, e flectindo os joelhos rapidamente. Juntei-me, a devo admitir que me cansei. Acho que ficamos assim uma meia hora. Depois disto, relaxamos, sentindo a energia dentro de nós, e “transferindo” a mesma para quem achássemos que podia precisar. No final, sentamo-nos em círculo, e cada pessoa disse o que sentiu.
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Depois de ter ido correr, reuni-me, finalmente, com o T2, com quem mantive contacto desde o início para vir para cá. É alguém que não é Norueguês, mas está aqui há muito tempo. Conversamos por cerce de hora e meia, conhecendo-nos um pouco melhor, e aprendendo eu também um pouco do funcionamento da CT. Fez-me as advertências da praxe, após dizer que não desconfiava da minha integridade, mas que tinham de ser feitas a toda a gente, e para eu não levar como pessoal. Não o fiz, claro. Achei-o bastante simpático, acessível, e acima de tudo alguém apaixonado pelo que faz, e que tenta tornar o mundo a better place. Achei que foi com a minha cara.
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No final, pergunta-me se estou interessado em dar uma pequena entrevista para a “Rádio TC International” (uma mailing list da Federação Europeia de CTs), ao que eu respondo “No way!”. Ele olha brevemente para mim, eu digo que estou a brincar, e partimo-nos a rir. “You couldn’t say no!”, diz ele, a rir. Quando a tiver, deixo aqui o link.
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Já comecei a ter conversas mais sérias com o pessoal, o que me agrada. Já deixamos o “de onde és” e tal, e começamos a falar de droga, recaídas, família, e afins. O que percebo e sinto em relação aos residentes, isso não vou escrever aqui. Claro que posso referir coisas mais superficiais, mas não acho que faça sentido, ainda que com identidades disfarçadas, expor a VIDA de pessoas num blog que pode ser lido por qualquer pessoa. E ainda que falando de coisas mais superficiais, tratá-las-ei por números, podendo o mesmo número, ao longo dos posts, ser pessoas diferentes, ou diferentes números a mesma pessoa.
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21h38